Há exatos sete anos, em setembro de 2015, o transporte público passou a integrar o Artigo 6º da Constituição como um direito social, assim como a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, entre outros itens.
Apenas recentemente, no entanto, pôde-se verificar a adoção de medidas práticas, para assegurar esse direito constitucional. Uma delas foi a liberação, neste semestre de 2022, de R$ 2,5 bilhões para o custeio das gratuidades de maiores de 65 anos, em sistemas regulares de transporte público coletivo urbano, semiurbano ou metropolitano.
Com o agravamento da crise do setor, gerada pela pandemia do coronavírus, ficou muito claro, também, que a cobertura do custo da produção dos serviços de transporte público não pode continuar dependendo, exclusivamente, da tarifa cobrada do passageiro pagante. Assim, se no período da pré-pandemia tínhamos apenas 25 cidades que subsidiavam seus sistemas de transporte, hoje já são mais de 260 municípios que aplicam os subsídios para reduzir o preço das passagens e garantir a justa e adequada remuneração das empresas operadoras.
Outra mudança significativa é a adoção, em mais de 50 cidades brasileiras, da tarifa zero, uma proposta que vem sendo debatida desde o final da década de 80, quando a então prefeita Luiza Erundina (1989-1992) lançou a ideia e o tema passou a ser discutido por técnicos, legisladores e pela própria população.
Apesar de o transporte ser um direito social, o conceito de universalidade não assegura a prestação desses serviços públicos no nível adequado, tampouco a gratuidade garante a plena satisfação dos passageiros. Vistos de outro ângulo, esses conceitos não significam, obrigatoriamente, que a população passará a contar com o atendimento de suas necessidades de deslocamento, no fluxo e na qualidade desejados, apenas com a possibilidade de utilizar o transporte público com o pagamento de valores simbólicos ou mesmo sem o pagamento das tarifas.
No caso da “tarifa zero”, os passageiros não pagam pelo uso do transporte; mas é preciso viabilizar novas fontes de receitas que garantam os recursos financeiros para os investimentos e para o custeio da operação dos veículos e das instalações, indispensáveis à prestação dos serviços.
Todos sabem que, no pós-pandemia, boa parte dos passageiros não voltou a usar o transporte coletivo e que a maioria dos “clientes” que optaram por continuar usando o transporte coletivo exigem, agora, um serviço com novos atributos e com melhor qualidade.
Se o pagamento pelos serviços prestados passa a ser responsabilidade integral do poder concedente, os recursos necessários deverão vir dos cofres públicos, mais especificamente do orçamento público ou de algum “fundo de transporte” ou “fundo de mobilidade”, a ser criado.
A primeira hipótese não é a mais recomendada, uma vez que o orçamento público é passível de ingerências políticas e não assegura, necessariamente, o volume de recursos que deve ser alocado em uma determinada rubrica específica, exclusivamente, para a remuneração das empresas operadoras.
A criação de um “fundo de transporte”, por sua vez, deve estabelecer em lei as diversas fontes de recursos que servirão para compor o montante necessário ao pagamento dos serviços prestados. Nesse caso, é comum considerar que o transporte individual, a população de mais alta renda e as empresas que produzem bens e serviços e que se beneficiam do transporte público façam parte das fontes alternativas de recursos necessários à prestação dos serviços de transporte coletivo.
Assim, um “fundo de transporte”, para custear o transporte coletivo, pode contar com valores originados do transporte individual, mais precisamente do pagamento pelo direito de circular em determinadas regiões da cidade (pedágio urbano); do pagamento pelo uso dos logradouros, para circulação e/ou estacionamento; de parte do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e de uma alíquota incidente sobre o preço da gasolina e do álcool etílico, utilizados nos veículos particulares (CIDE municipal).
Além disso, é perfeitamente cabível imaginar que um valor acrescido ao Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) e/ou ao Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), incidente sobre imóveis residenciais e comerciais localizados nas zonas mais nobres das cidades, e até mesmo a fixação de uma alíquota sobre o valor da folha de pagamento das empresas, que são as maiores beneficiárias do transporte coletivo, podem constituir outras fontes de recursos de um “fundo de transporte”.
É preciso destacar, no entanto, que todas essas fontes alternativas devem ser viabilizadas por lei específica e que, em alguns casos, a criação de taxas ou mesmo de alíquotas incidentes sobre o consumo ou a produção de bens e serviços depende de prévia autorização legislativa, nas três esferas de governo.
A proposta da adoção da “tarifa zero” ou mesmo de uma tarifa com valor reduzido representa diminuir o custo dos deslocamentos da população, levando a uma prevalência do transporte coletivo sobre o individual e de uma visão avançada de gestão e de governança públicas, além de reconhecer que o transporte coletivo é a maneira mais racional de garantir a movimentação das pessoas, ampliando as possibilidades de locomoção, economizando recursos naturais, preservando o meio ambiente, utilizando o espaço urbano de forma mais democrática e proporcionando melhor qualidade de vida às pessoas que vivem e trabalham nas cidades.
Tarifa zero não significa custo zero. Porém, a adoção dessa prática pode permitir que a população realize os seus deslocamentos sem necessidade do pagamento de uma tarifa, utilizando essa “sobra de recursos” para suas despesas pessoais ou para a aquisição de algum bem ou serviço. A experiência tem mostrado que a adoção da “tarifa zero”, além do benefício social, melhora o desempenho das atividades econômicas locais.
FRANCISCO CHRISTOVAM é presidente da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) e do Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo (SPUrbanuss). É, também, vice-presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo (FETPESP) e da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), bem como membro do Conselho Diretor da Confederação Nacional dos Transportes (CNT) e do Conselho Consultivo do Instituto de Engenharia